Rubem Braga falava de passarinhos, plantas e flores quando a
ecologia ainda era um movimento distante na consciência do cidadão.
"A Borboleta Amarela é um convite amigo
ao leitor que enfrenta problemas da alma. "
Patrício Bentes
Então, aí
está, na íntegra, a crônica de Rubem Braga, publicada originalmente, em um jornal do Rio, em 1952.
A BORBOLETA AMARELA- Rubem Braga
"Era uma
borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que
fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que fazem vida urbana; mas,
como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.
Era na esquina de
Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao mármore negro
do Grande Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de conservas e
uísques; eu vinha na mesma direção; logo estávamos defronte da A.B.I. Entrou um
instante no hall, entre duas colunas; seria um jornalista? – pensei com certo
tédio.
Mas logo saiu. E subiu
mais alto, acima das colunas, até o travertino encardido. Na rua México eu tive
de esperar que o sinal abrisse: ela tocou, fagueira, para o outro lado,
indiferente aos carros que passavam roncando sob suas leves asas. Fiquei a
olhá-la. Tão amarela e tão contente da vida, de onde vinha, aonde iria? Fora
trazida pelo vento das ilhas – ou descera no seu vôo saçaricante e leve da
floresta da Tijuca ou de algum morro – talvez o de São Bento Onde estaria uma
hora antes, qual sua idade? Nada sei de borboletas. nascera, acaso, no jardim
do Ministério da Educação? Não; o Burle Marx faz bons jardins, mas creio que
ainda não os faz com borboletas – o que, aliás, é uma boa idéia. Quando eu o
mandar fazer os jardins de meu palácio, direi: Burle, aqui sobre esses manacás,
quero uma borboleta amare... Mas o sinal abriu e atravessei a rua correndo,
pois já ia perdendo de vista a minha borboleta.
A minha borboleta!
Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a
borboleta era minha – como se fosse meu cão ou minha amada de vestido amarelo
que tivesse atravessado a rua na minha frente, e eu devesse segui-la. Reparei que
nenhum transeunte olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo
vagamente outras coisas – as casas, os veículos ou se vendo –, só eu vira a
borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele ângulo há um jardinzinho,
atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os ramos de acácia e de uma
árvore sem folhas, talvez um "flamboyant"; havia, naquela hora, um
casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três sujeitos espalhados pelos
outros bancos, dos quais uns são de pedra, outros de madeira, sendo que estes
são pintados de azul e branco. Notei isso pela primeira vez, aliás, naquele
instante, eu que sempre passo por ali; é que a minha borboleta amarela se
tornava sensível às cores.
Ela borboleteou um
instante sobre o casal de namorados; depois passou quase junto da cabeça de um
mulato magro, sem gravata, que descansava num banco; e seguiu em direção à
Avenida. Amanhã eu conto mais."
(segunda parte)
"Eu ontem parei a
minha crônica no meio da história da borboleta que vinha pela rua Araújo Porto
Alegre; parei no instante em que ela começava a navegar pelo oitão da
Biblioteca Nacional.
Oitão, uma bonita
palavra. Usa-se muito no Recife; lá, todo mundo diz: no oitão da igreja de São
José, no oitão do Teatro Santa Isabel... Aqui a gente diz: do lado. Dá no
mesmo, porém oitão é mais bonito. Oitão, torreão.
Falei em torreão
porque, no ângulo da Biblioteca, há uma coisa que deve ser o que se chama um
torreão. A borboleta subiu um pouco por fora do torreão: por um instante
acreditei que ela fosse voltar, mas continuou ao longo da parede. Em certo
momento desceu até perto da minha cabeça, como se quisesse assegurar-se de que
eu a seguia, como se me quisesse dizer: "estou aqui".
Logo subiu novamente,
foi subindo, até ficar em face de um leão... sim, há uma cabeça de leão, aliás
há várias, cada uma com uma espécie de argola na boca, na Biblioteca. A
pequenina borboleta amarela passou junto ao focinho da fera, aparentemente sem
o menor susto. Minha intrépida, pequenina, vibrante borboleta amarela! pensei
eu. Que fazes aqui, sozinha, longe de tuas irmãs que talvez estejam agora mesmo
adejando em bando álacre na beira de um regato, entre moitas amigas – e aonde
vais sobre o cimento e o asfalto, nessa hora em que já começa a escurecer, oh
tola, oh tonta, oh querida pequena borboleta amarela! Vieste talvez de Goiás,
escondida dentro de algum avião; saíste no Calabouço, olhaste pela primeira vez
o mar, depois...
Mas um amigo me bateu
nas costas, me perguntou "como vai bichão, o que é que você está vendo
aí?" Levei um grande susto, e tive vergonha de dizer que estava olhando
uma borboleta; ele poderia chegar em casa e dizer: "encontrei hoje o
Rubem, na cidade, parece que estava caçando borboleta".
Lembrei-me de uma
história de Lúcio Cardoso, que trabalhava na Agência Nacional: Um dia acordou
cedo para ir trabalhar; não estava se sentindo muito bem. Chegou a se vestir,
descer, andar um pouco junto da Lagoa, esperando condução, depois viu que não
estava mesmo bem, resolveu voltar para casa, telefonou para um colega, explicou
que estava gripado, até chegara a se vestir para ir trabalhar, mas estava um
dia feio, com um vento ruim, ficou com medo de piorar – e demorou um pouco no
bate-papo, falou desse vento, você sabe (era o noroeste) que arrasta muita
folha seca, com certeza mais tarde vai chover etc., etc..
Quando o chefe do
Lúcio perguntou por ele, o outro disse: "Ah, o Lúcio hoje não vem não. Ele
telefonou, disse que até saiu de casa, mas no caminho encontrou uma folha seca,
de maneira que não pode vir e voltou para casa."
Foi a história que
lembrei naquele instante. Tive – por que não confessar? – tive certa vergonha
de minha borboletinha amarela. Mas enquanto trocava algumas palavras com o
amigo, procurando despachá-lo, eu ainda vigiava a minha borboleta. O amigo foi-se.
Por um instante julguei, aflito, que tivesse perdido a borboleta de vista. Não.
De maneira que vocês tenham paciência: na outra crônica, vai ter mais história
de borboleta.
(última parte)
"Mas, como eu ia
dizendo, a borboleta chegou à esquina de Araújo Porto Alegre com a Avenida Rio
Branco; dobrou à esquerda, como quem vai entrar na Biblioteca Nacional pela
escada do lado, e chegou até perto da estátua de uma senhora nua que ali
existe; voltou; subiu, subiu até mais além da copa das árvores que há na
esquina – e se perdeu.
Está claro que esta é
a minha maneira de dizer as coisas; na verdade, ela não se perdeu; eu é que a
perdi de vista. Era muito pequena, e assim, no alto, contra a luz do céu
esbranquiçado da tardinha, não era fácil vê-la. Cuidei um instante que
atravessava a Avenida em direção à estátua de Chopin; mas o que eu via era
apenas um pedaço de papel jogado de não sei onde. Essa falsa pista foi que me
fez perder a borboleta.
Quando atravessei a
Avenida ainda a procurava no ar, quase sem esperança. Junto à estátua de
Floriano, dezenas de rolinhas comiam farelo que alguém todos os dias joga ali.
Em outras horas, além de rolinhas, juntam-se também ali pombos, esses grandes,
de reflexos verdes e roxos no papo, e alguns pardais: mas naquele momento havia
apenas rolinhas. Deus sabe que horários têm esses bichos do céu.
Sentei-me num banco,
fiquei a ver as rolinhas – ocupação ou vagabundagem sempre doce, a que me
dedico todo dia uns 15 minutos. Dirás, leitor, que esse quarto de hora poderia
ser mais bem aproveitado. Mas eu já não quero aproveitar nada; ou melhor,
aproveito, no meio desta cidade pecaminosa e aflita, a visão das rolinhas, que
me faz um vago bem ao coração.
Eu poderia contar que
uma delas pousou na cruz de Anchieta; seria bonito, mas não seria verdade. Que
algum dia deve ter pousado, isso deve; elas pousam em toda parte; mas eu não
vi. O que digo, e vi, foi que uma pousou na ponta do trabuco de Caramuru. Falta
de respeito, pensei. Não sabes, rolinha vagabunda, cor de tabaco lavado, que esse
é Pai do Fogo, Filho do Trovão?
Mas essa conversa de
rolinha, vocês compreendem, é para disfarçar meu desaponto pelo sumiço da
borboleta amarela. Afinal arrastei o desprevenido leitor ao longo de três
crônicas, de nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. Cheguei a receber
telefonemas: "eu só quero saber o que vai acontecer com essa
borboleta". Havia, no círculo das pessoas íntimas, uma certa expectativa,
como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no centro
urbano. Pois eu decepciono a todos, eu morro, mas não falto à verdade: minha
borboleta amarela sumiu. Ergui-me do banco, olhei o relógio, saí depressa, fui
trabalhar, providenciar, telefonar... Adeus, pequenina borboleta amarela."
Rio, setembro de 1952